Militante dos Direitos Humanos a conselheira tutelar de
Campinas, Kátia Regina Mendes, assistente social, deu entrevista exclusiva ao
Blogue em que fala sobre a instituição, Conselho Tutelar, onde já está em seu
segundo mandato. Ela fala dos desafios e conquistas de trabalhar numa
instituição que tem autonomia em relação aos poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário. Ela recebeu a Reportagem em sua casa para uma entrevista
esclarecedora e de alguém é apaixonada e dedicada ao seu trabalho. Confira a entrevista na íntegra:
Reportagem – Kátia,
qual é o maior desafio de ser conselheira tutelar numa cidade como Campinas?
Kátia Regina Mendes –
É a falta de políticas públicas. Falta de investimento nos setores mais pobres
desta cidade. Falta de creche, falta de centro de saúde, de médicos, é a falta
de escola para todo mundo, é a falta de serviços para atender a população.
Reportagem – Qual é o
setor que você considera que mais traz demandas ao Conselho Tutelar?
Kátia –
Atualmente é o setor da educação.
Reportagem – Por quê?
Kátia – Porque
nós temos um déficit de educação infantil muito grande. Hoje contabiliza-se que
as listas de espera do município giram em torno de sete mil crianças fora da
escola. Não se construiu desde o início deste governo nenhuma unidade
educacional. A população cresce a todo instante. Segundo informações nas maternidades, em Campinas,
chegam nascer cerca de oitenta crianças por dia nesta cidade e nós não
construímos oitenta vagas de creches por dia aqui em Campinas. Então
existe um crescimento populacional e não existe investimento público nas
políticas publicas que atendem essa primeira infância. Uma falta de
planejamento do governo e uma falta de prioridade do Executivo em determinadas
políticas. A educação infantil é o primeiro ponto, onde a situação é mais
gritante e aí em segundo lugar eu posso elencar a questão da própria evasão
escolar, que também está relacionada à questão da educação. Campinas tem uma
população imigrante muito grande, então são pessoas em busca de emprego. Muitas
pessoas vêm para Campinas com suas famílias inteiras, se instalam nas regiões
periféricas onde o aluguel é mais barato e não conseguem, nessas regiões,
incluir seus filhos nas escolas por falta de vagas. Veja que na região do Campo
Belo cerca de 2.800 alunos saem de lá diariamente para frequentar as escolas em
outras regiões da cidade porque não tem escola lá. Na educação infantil,
voltando um pouquinho, nós fizemos a conta na semana passada, só na região do
Campo Belo, faltam 1.046 vagas de educação infantil. E nós temos 2.800 alunos
do ensino fundamental, do quinto ao nono ano que saem da região do Campo Belo e
vão estudar em outras escolas em outras regiões onde tem vaga, mas não tem
população.
Reportagem – Diante
deste cenário, como o Conselho Tutelar age?
Kátia – A gente atende.
Existem os casos individuais em que as famílias vão procurar o Conselho
Tutelar. Então uma mãe que foi lá e fez um cadastro na escola próxima de sua
casa e que não foi chamada para que seus filhos iniciassem as atividades
escolares na educação infantil, ela procura o Conselho Tutelar,
leva seus documentos pessoais e a gente faz a orientação de como ela deve
proceder para que seu filho tenha esse direito garantido. Então o procedimento
é um procedimento m que o Conselho Tutelar emite uma carta de solicitação de
vaga, de requisição de vaga na escola. A escola negando essa vaga, por escrito,
é tudo documentado, ela tem a prova de que o estado está negando seu direito. Então
ela recebe o encaminhamento para a Defensoria Pública para que o defensor
público possa entrar com uma representação na Justiça e obrigar o prefeito a
dar essa vaga para essa criança. Ontem estive na Secretaria de Educação e tem
milhares de processos lá, muitos processos mesmo, em que as famílias estão
entrando na Justiça para requerer o seu direito à matricula na educação
infantil. E o
que me chamou atenção foi uma fala de um funcionário da Secretaria que disse
que nem todas as famílias que entram na Justiça para requerer esse direito são
famílias das classes mais populares, que também existem muitas pessoas de
classe média que usam do recurso da Justiça para conseguir a vaga
na escola pública. Entende-se que é um direito líquido e certo, universal, não
tem recorte de classe para a criança poder estar na escola pública de educação
infantil. Então muitas famílias acabam nem recorrendo ao Conselho Tutelar,
recorem diretamente ao juiz entrando com ações particulares e o juiz também
determina a inclusão dessa criança na rede. O que acontece é que a condição da
família da classe média de recorrer à Justiça para garantir certos direitos é
muito maior que a das classes populares. Às vezes a falta de recurso da mãe de
até mesmo vir ao centro da cidade, à sede do Conselho Tutelar, de ir à Cidade
Judiciária, de pagar o transporte, dessas idas e vindas, apresentar
documentação acaba dificultando tanto o procedimento que algumas dessas
famílias acabam desistindo no meio do percurso. Acabam continuando nas listas
de espera. Agora, se não há construção de escolas elas vão permanecer nas
listas de espera e não vão ter essa garantia legal e que também não há uma
prioridade do poder Executivo em garantir essas vagas nos lugares onde tem uma
lista de espera maior. É complicado. Também tem um problema que é o seguinte:
Às vezes a família da periferia entra com ação na Justiça, vai ao Conselho
Tutelar, na Defensoria Pública, chega entrar com ação e o juiz determina a vaga
e o que o Poder Executivo acaba por fazer Ao invés de dar essa vaga para a
família lá no território onde ela mora, ele disponibiliza uma vaga em outro
território muito distante. E aí essa família acaba desistindo dessa vaga porque
para ela não é interessante. Então você fica com um fluxo de vagas em
determinadas escolas que pautam em torno do Centro com uma demanda atendida e
ao mesmo tempo desistente pelos pais. Porque essa desistência? Porque não
atende à necessidade da família por causa da distância entre a casa e a escola.
Então esse é um grande imbróglio. No caso da evasão escolar, as escolas que têm
maior índice de evasão também estão relacionadas a esta distância dos 2.800
alunos que saem da região do Campo Belo e vêm estudar em outros lugares, eu
atendo a Região Sul no Conselho Tutelar, por isso eu posso fazer essa leitura
muito bem, inserida no território que é mapeado. Mas a educação é um problema
sério.
Reportagem – Como que
o Conselho pode agir sabendo que é uma prioridade numa condição de uma ação
macro?
Kátia – Então, no caso da
educação infantil existe já uma ação proposta pelo Conselho Tutelar ao Ministério
Público de quase dez anos que está no Ministério Público. Me parece que a multa
está em torno de R$ 125 milhões a ser paga pelo Poder Executivo por não ter
cumprido com seu papel que é ofertar a vaga na educação infantil, mas
que está em processo de execução, mas eu não tenho agora mais informações a
respeito se executou, ou se não executou, quando que executa, isso é uma ação
do Ministério Público. Não tem como no âmbito da educação infantil fazer uma
outra ação, propor ao Ministério Público uma outra ação de âmbito coletivo para
resolver esse problema. Não pode. O Ministério Público só pode abrir uma ação
de violação de direito uma vez. No caso da educação, da evasão escolar, existe
uma dificuldade entre o Município e o Estado, na oferta dessas vagas, nessas
regiões mais populosas em que não se atende a população em sua integralidade
que é o seguinte: O Estado diz, a Diretoria de Ensino diz que existe recurso para
construir essas unidades escolares. É uma esfera de governo que fala isso. O
Município, que é outra esfera, tem que ofertar o terreno para serem construídas
essas unidades. Meio que fica num imbróglio entre o Município e o Estado. O
Município deveria dizer “então construa nessa área e ele não disponibiliza essa
área para construir”. O Estado não constrói porque diz que o Município não
disponibiliza a área para que sejam construídas as unidades escolares. E isso
vai se repetindo ano após ano, ano após ano, isso vai permanecendo. Existem
alguns problemas ainda mais emergentes que está localizado onde estão sendo
construídos os projetos habitacionais do Minha Casa Minha Vida em que se
mobilizam milhares de famílias para um determinado território, um determinado
conjunto habitacional que foram entregues, que estão sendo entregues e aí nesse
território não existem as políticas públicas para darem conta de atender essa
demanda que foi para lá. Então as pessoas estão conseguindo sim a sua moradia,
mas estão perdendo o direito a todos esses outros serviços públicos: Saúde,
escola, creche, enfim, a região onde isso está muito gritante é a região do
Bassoli, na região do Campo Grande, isso já vem se arrastando e na Região Sul
existe um condomínio que é o Condomínio Abaeté que fica ali no Eixo Santos
Dumont, próximo ao Jardim Itatinga, Nova Mercedes, e na Região Sudoeste, se não
me engano, ali perto do Extra Amoreiras, mas não tenho certeza porque é um
território que eu não tenho muita propriedade para dizer. São lugares muito
populosos. Agora, o que me chama atenção também é que em regiões mas
requintadas da cidade não são construídos estes tipos de conjuntos
habitacionais. Você não vê uma grande construção do Minha Casa Minha Vida em
lugares como Sousas, Barão Geraldo, onde já existem os equipamentos públicos.
Então isso é uma coisa que me chama muito a atenção. Mas quem dispõem não é, de
verdade onde vão ser construídos esses conjuntos habitacionais? Aí também é o
Poder Executivo que autoriza essas construções. Nós estamos fazendo de Campinas
uma cidade que divide-se ao meio pela, isso já é histórico, inclusive, pela
linha do trem, que é o lado pobre e o lado rico. O lado da Santos Dumont da
linha do trem é o lado pobre e o lado do Centro é um lado mais requintado, mais
refinado, onde os serviços acontecem. É um grande equívoco dos gestores no
sentido de planejar o crescimento da cidade.
Reportagem – Isso vem
ocorrendo por falta de conhecimento dos gestores?
Kátia – Não. Não
há falta de conhecimento. Sabe-se exatamente o que se quer, não é? Veja o que
cresceu a região do Campo Grande nos últimos vinte anos. O que era a região do
Campo Grande e o que ela está se tornando em termos de população. Veja a
história da Rua Moscou, daquelas famílias que ali estavam, na Região Leste, e
foram transferidas na década de noventa para a região do Itajaí. Hoje as
famílias já estão lá há quase vinte anos. E os equipamentos públicos ainda não
chegaram a contento de atender a demanda populacional que lá vive. Então eu
acho que isso é muito bem pensado, muito bem articulado da Campinas que é
administrada, os interesses de para quem essa cidade está sendo administrada.
Reportagem – Você
conhece citar uma grande conquista do Conselho Tutelar, você que está no
segundo mandato como conselheira tutelar? Algo que te marcou e te mobiliza a
continuar atuando?
Kátia – Em termos
das políticas mais gerais, em termos de pensar o território, o que trazem de
conquista é esse entendimento da cidade e essa leitura de como a cidade está
colocada hoje para a população. Mas a ação do Conselho Tutelar, ela acaba se
dando em atendimentos individuais, de famílias, de casos específicos.Não é só a
falta de vaga na escola. A gente atende muitas situações de violência
doméstica, de abuso sexual, de omissão por parte da família, e é muito gostoso
quando você recebe um retorno de uma pessoa que você atendeu em algum momento
da vida dela e que ela traz para você: Olha, obrigado por você ter conversado
comigo naquela situação em que eu estava prestes a desistir da escola e voltei,
olha aquele foi um momento difícil mas agora eu me reorganizei e estou vivendo
outra coisa. Tenho garantido para a minha família a possibilidade de uma vida
melhor”. Teve um caso que muito me dá alegria que era uma família em que o pai
agredia muito os filhos. Ele tinha como estratégia de educação bater, a
agressão física. Aí nós notificamos ele para comparecer ao Conselho e eu conversando com ele sobre a questão dos
ciclos da violência e da necessidade de a família estar passando por um
atendimento especializado para que essa violência pudesse ser rompida para que
eles pudessem ter outro tipo de vida e aí esse caso passou, eu os encaminhei
para um serviço que é o Ceamo e eu tive a sorte de encontrar com ele na rua
outro dia. E ele me parou. Eu não lembrava do nome dele, porque a gente atende
muita gente. Daí ele me recordou “eu sou fulano de tal, você me atendeu, e eu
queria te dizer obrigado porque você salvou minha família”. Então esse é um
grande feito em que você consegue fazer a intervenção. Porque ele disse: “Hoje
eu não bato mais no meu filho, minha mulher tem sido muito mais feliz, ela
conseguiu trabalhar, eu deixei de ter ciúme de deixar ela sair de casa para
trabalhar. A gente construiu essa ideia juntos e ela está trabalhando. Os meus
filhos estão crescendo”. Então, parece que não, mas faz um efeito muito grande
nas vidas das pessoas. Tem um outro caso de uma adolescente que era vítima de
exploração sexual e hoje faz faculdade de ciências sociais e ela veio comemorar
junto comigo a questão de ela ter conseguido superar a situação em que ela
vivia, que era uma situação de exploração sexual, mas de mudar totalmente a sua
vida a partir de uma inclusão num determinado programa de proteção à infância e
à juventude. Então é possível. Agora também tem as coisas tristes que acontecem
nos casos individuais. Por exemplo um menino que você faz uma orientação porque
está num envolvimento com o tráfico de drogas e que você faz toda uma
intervenção para que ele retorne à escola, para que ele frequente algum serviço
e ele em razão de sua própria conduta não aceita nenhum dos encaminhamentos
feitos e em outro momento você vai fazer uma fiscalização na Fundação Casa e
você se depara com esse menino que passou por5 você e ele não saiu do tráfico,
ele permaneceu até ser detido em flagrante e estar hoje cumprindo uma medida,
isso é muito triste também, porque a gente não consegue intervir na vida das
pessoas que passam pela gente. Agora, faltam outras possibilidades de as
pessoas enxergarem a vida também e vivenciarem a vida. Faltam serviços de
cultura, de esporte, de lazer, para que essas famílias possam mudar a sua
rotina e ter uma outra vida. Quando não se tem nada, o tráfico está de portas
abertas. Ele preenche aquele espaço que o estado não preencheu. Se o estado não
ocupa, tem alguém que ocupa. E esse alguém não é movimento social que ocupou
esse país na década de oitenta em prol das lutas sociais. É um movimento de
degradação da vida. É um movimento do capitalismo ou da questão de que o
menino não está mais se importando que ele precisa de uma escola legal, com
qualidade para poder estudar, mas que ele precisa dar uma resposta para a
sociedade, de estar com seu tênis de marca, com sua roupa de marca, da
impressão que ele vai causar nas gatinhas e isso o tráfico dá para ele e o
estado não.
Reportagem – Você
pode explicar um pouco o que é o Conselho Tutela?
Kátia – O
Conselho Tutelar é um órgão autônomo. Quando eu digo autônomo eu digo que ele
não faz parte do Poder Executivo, não faz parte do Poder Legislativo e não faz
parte do Poder Judiciário. Ele é autônomo em relação aos três poderes. Ele não
é um órgão jurisdicional, ele não faz parte do arcabouço da Justiça para
aplicar sansões, não é isso. Ele é um zelador do direito. Ele é quem cuida.
Então o papel do Legislativo é, entre tantos,
fazer leis. Então ele regulamenta. O papel do Executivo é executar as
políticas públicas em prol de um povo. Então ele atende. O papel do Judiciário
é julgar quando um direito não é respeitado. O Conselho Tutelar, ele zela. Zela
para que as leis estejam de acordo com a proteção integral da criança e do
adolescente, zela para que o Poder Executivo possa atender de fato essas
crianças e adolescentes e suas famílias, e para que o Poder Judiciário possa
ser acionado sempre que houver uma violação de direito constatada e julgar os
crimes e quem faz esse crime. A gente, às vezes fala de crime. A gente pensa
apenas naquele bandido que assaltou, a gente pensa em situações criminosas,
quando a gente não pensa que o poder público, quando ele viola o direito de
acesso de uma criança numa escola de educação infantil, ele também está
cometendo um crime contra seu povo. E esse crime também precisa ser denunciado.
Então o Conselho Tutelar, por ser esse zelador, ele tem esse papel de trazer à
família alguns caminhos para que ela encontre esses direitos.
Reportagem – O que
mais você considera importante que as pessoas saibam sobre o Conselho Tutelar?
Kátia – Eu
considero importante participar do processo de escolha dos conselheiros
tutelares. O conselheiro tutelar é eleito pela população e existe uma
participação muito simplista da parte da população. Todo o eleitor da cidade
pode votar nos candidatos ao Conselho Tutelar, mas não é votar simplesmente. É
saber de fato quem são os candidatos a conselheiros tutelares, se eles são
realmente zeladores de direitos, se eles são comprometidos com a questão da
defesa da criança e do adolescente. Porque por ser uma cargo eletivo a
população e o próprio candidato podem confundir esse espaço como se fosse um
espaço político-partidário, de disputa de poder. É um poder sim. Mas é um poder
em prol da criança de toda a cidade. Então precisa ter conhecimento, sim, sobre
a questão do direito da criança e do adolescente. Precisa ser um defensor nato
dos direitos da criança e do adolescente. Precisa ter intervenção na
comunidade. Não dá para a população eleger pessoas desconectas desse mundo
somente porque elas chegaram lá para o pleito.
Reportagem – Quando
que será a próxima eleição?
Kátia – Outubro
de 2015. Existe uma mudança nacional na lei que regulamenta que todos os
Conselhos Tutelares de todo o Brasil vão passar por eleição no mesmo período.
Esse período não coincide mais com períodos eleitorais nos municípios para não
trazer conflitos das eleições e nem os apadrinhamentos, eu posso dizer até,
então em 2015 teremos eleição para os Conselhos Tutelares e em 2016 teremos de
novo eleições para prefeitos, vereadores. E neste ano de 2014 nós temos eleição
para presidente, deputados, aí em 2015, Conselho Tutelar e depois prefeito. Vai
ficar um calendário eleitoral mais organizado. E eu acredito também que existe
um esforço muito grande a partir da consolidação dessa lei de não só o fato de regulamentar, mas de dar
visibilidade maior para esse órgão autônomo, não jurisdicional, zelador do
direito da criança e do adolescente em relação à sociedade como um todo. Então
eu espero que haja em âmbito nacional mais divulgação sobre o papel dos
conselheiros que tenha tempo de TV para que possa ser explicativo, que o
Conselho Tutelar não é um órgão persecutório, mas um órgão de defesa e de
proteção do direito da criança e do adolescente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário