"Mais longe, numa volta da estrada, a telha encarnada de uma casa brilhava ao sol. Lentamente, Chico Bento moveu os passos trôpegos na sua direção.
De repente um bé!, agudo e longo, estridulou na calma
E uma cabra ruiva, nambi, de focinho quase preto, estendeu a cabeça por entre a orla de galhos secos do caminho, aguçando os rudimentos da orelha, evidentemente procurando ouvir, naquela distenção de sentidos, uma longínqua resposta a seu apelo.
Chico Bento, perto, olhava-a, com as mãos trêmulas, a garganta áspera, os olhos afogueados.
O animal soltou novamente o seu clamor aflito.
Cauteloso, o vaqueiro avançou um passo.
E de súbito em três pancadas secas, rápidas, o seu cacete de jucá zuniu; a cabra entonteceu, amunhecou, e caiu em cheio por terra.
Chico Bento tirou do cinto a faca, que de tão velha e tão gasta, nunca achara quem lhe desse um tostão por ela.
Abriu no animal um corte que foi de debaixo da boca até separar ao meio o úbere branco de tetas secas, escorridas.
Rapidamente iniciou a esfolação. A faca afiada corria entre a carne e o couro, e, na pressa, arrancava aqui pedaços de lombo, afinava ali a pele, deixando-a quase transparente.
Mas Chico Bento cortava, cortava sempre, com um movimento febril de mãos, enquanto o Pedro, comovido e ansioso, ia segurando o couro descarnado.
Afinal, toda a pele destacada estirou-se no chão.
E o vaqueiro, batendo com o cacete no cabo da faca, abriu ao meio a criação morta.
Mas Pedro, que fitava a estrada, o minterrompeu:
_Olha pai!
Um homem de mescla azul vinha para eles em grandes passadas.
_Cachorro! Ladrão. Matar minha cabrinha desgraçado.
Chico Bento, tonto, desnorteado, deixou a faca cair e, ainda de cócoras, tardamudeava explicações confusas.
O homem avançou, arrebatou-lhe a cabra e procurou enrolá-la no couro.
Dentro da sua perturbação, Chico Bento compreendeu apenas que lhe tomavam aquela carne em que seus olhos famintos já re regalavam, da qual suas mãos febris já tinham sentido o calor confortante.
E lhe veio agudamente à lembrança Cordulina exânime na pedra da estrada... O Duquinha tão morto que já nem chorava...
Caindo quase de joelhos, com os olhos vermelhos cheios de lágrimas que lhe corriam pela face áspera, suplicou, de mãos juntas:
_Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaçõ de carne, um tanquinho ao menos, que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! Já caíram com a fome!...
_Não dou nada! Ladrão! Sem vergonha! Cabra sem-vergonha!
A energia abatida do vaqueiro não se estimulou nem mesmo diante daquela palavra.
Antes de abateu mais, e ele ficou na mesma atitude de súplica.
E o homem disse afinal, num gesto brusco, arrancando as tripas da criação e atirando-as para o vaqueiro:
_Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!...
A faca brilhava no chão, ainda ensangüentada, e atraiu os olhos de Chico Bento.
Veio-lhe um ímpeto de brandí-la e ir disputar a presa; mas foi ímpeto confuso e rápido. Ao gesto de estender a mão, faltou-lhe o ânimo.
O homem, sem se importar com o sangue, pusera o animal sumariamente envolvido no couro e marchava para a casa cujo telhado vermelhava, lá além.
Pedro, sem perder tempo, apanhou o fato que ficara no chão e correu para a mãe.
Chico Bento ainda esteve alguns momentos na mesma postura, ajoelhado.
E antes de se erguer, chupou os dedos sujos de sangue, que lhe deixavam na boca um gosto amargo de vida.
Fragmento de "O Quinze", de Raquel de Queiroz.
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